A Galeria Cassia Bomeny inaugura a exposição La sangre nunca muere no dia 31 de agosto, com obras de Herbert De Paz, artista de El Salvador radicado há dez anos no Brasil. Curada por Keyna Eleison, a individual tem como eixo conceitual as memórias ancestrais do artista e seu repertório imagético.
Através de uma poética que dialoga diretamente com a História, abordando e questionando as narrativas hegemônicas sobre a colonização nas Américas, a obra de Herbert divide-se entre pinturas e colagens criadas a partir de fotos de arquivo e do seu próprio repertório imagético.
“Meu trabalho traz a memória do meu lugar de origem, um território indígena e afrodiaspórico da América Central, pensando pontos que encontrei em comum com a história do Brasil e com os quais me identifiquei”, comenta o artista. “Vejo minha obra como uma prática de arqueologia da imagem que serve para pensar outras possibilidades para o passado, modificando o presente e o futuro no imaginário coletivo, a partir de elementos alegóricos. Nas pinturas, eu coloco cenas do meu imaginário; já meu trabalho de colagem acontece a partir da pesquisa de registros históricos em revistas e se dá como desdobramento dessas imagens antigas com temas indígenas e negros”.
Nascido em El Salvador, Herbert De Paz chegou ao Brasil em 2013 para cursar a graduação em artes visuais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, por meio de um programa de apoio educacional e cultural estabelecido entre o Brasil e países em desenvolvimento. Passou por cursos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e, em 2020, ingressou no mestrado em História da Arte, também na UERJ. Paralelamente, foi assistente de Adriana Varejão e educador no MAM Rio e na Casa Museu Eva Klabin, onde entrou em contato direto com a arte brasileira e a dinâmica institucional.
Aos 32 anos, emerge na cena artística através de exposições individuais realizadas na Galeria A Gentil Carioca (2021) e na Caixa Preta (2019), e de exposições coletivas em espaços como MAM Rio, Centro Municipal de Arte Helio Oiticica, EAV Parque Lage, Museu de Arte de El Salvador e Tanya Bonakdar Gallery (Nova York).
A consolidação de seu trabalho se reflete também na integração de suas obras às coleções do Instituto Inhotim, do Museu de Arte do Rio de Janeiro e do Institute of Contemporary Art, em Miami. Bem como na nomeação ao prêmio Artista Emergente, pela Cisneros Fontanals Art Foundation’s (CIFO), em Miami; e no convite para realizar uma residência artística na organização salvadorenha Yes Contemporary Art. Para o ano que vem, Herbert confirmou, ainda, participação na residência Fointainhead, em Miami.
Em sua terceira exposição individual, ele retoma a aproximação com Keyna Eleison, depois da exposição Escrito no corpo, também curada por ela, na Carpintaria (2020). Desta vez, o artista ocupa a Galeria Cassia Bomeny com peças concebidas especialmente para a mostra, composta majoritariamente por pinturas. A tela que dá título à exposição carrega o nome de uma canção ancestral de El Salvador, gravada pelo grupo indigena Talticpac, que retrata uma comunidade formada por uma mulher indígena, um homem negro e seu filho.
“A canção evoca essa raiz do meu país, que por muito tempo recebeu homens africanos escravizados que criavam famílias com as mulheres indígenas para que estes filhos fossem livres. Durante aproximadamente três séculos, El Salvador foi um território majoritariamente negro e indígena”, conta De Paz. “Eu carrego esse sangue que pulsa sob o desejo dos meus ancestrais de um futuro melhor com seus descendentes, e levo sempre essa mensagem de luta pela autonomia do território sem esquecer das minhas raízes”.
Duas telas de grandes dimensões (200×150 cm) abordam a inserção do artista no território brasileiro e na história da sua arte moderna e contemporânea, e trabalham aspectos da identidade indígena de El Salvador, que fazem parte de sua origem. “É uma maneira de trazer um pouco da memória ancestral que eu aprendi lá e ainda mantenho”, explica.
Em menor escala, oito telas compõem a série Expatriados, que resulta de uma pesquisa mais recente desenvolvida durante o mestrado e aborda objetos pré-hispânicos, que estão fora do seu território de origem e vêm sendo leiloados no mercado de arte.
Já o trabalho de colagem de Herbert De Paz será representado por uma única peça, que integra a série Iconografia das sombras. Nela, o artista se baseia na pesquisa iconográfica de imagens publicadas na Revista de História da Biblioteca Nacional (2005-2017) para subverter a representação de indígenas e negros na História, dando protagonismo a esses corpos racializados. “Eu convoco essas pessoas para que possam nos contar a história desse passado colonial para além do que sabemos por meio dos registros oficiais”, explica o artista.
Tendo como suporte uma chapa de alumínio de grande dimensão, recortada com a silhueta de uma personagem que se apresenta como narradora desta história, a peça é preenchida com imagens das revistas que trazem cenas do cotidiano, registros familiares e retratos de personalidades.
“Uma das premissas que mantenho nas colagens é o entendimento de que nenhuma daquelas imagens é uma autorrepresentação. Para mim, elas já são feitas num regime de violência, quero trazer outra proposta”.
De Paz aprofundou-se na pesquisa histórica e iconográfica a partir do seu trabalho de conclusão na graduação, em que apresentou O anjo da história (2017). As colagens, que começaram pequenas ainda na universidade e ganharam escala ao longo do tempo, se originam na constatação de que o conhecimento se dá de uma forma oficial, mas que há outras histórias por trás dessa narrativa hegemônica.
“Nós aprendemos uma História que não dá conta da nossa existência porque não nos reconhecemos nela. Na colagem, eu remixo as imagens, trazendo corpos do passado para o presente para nos contar essas histórias. Como artista, acredito no poder das imagens; existem outras possibilidades de pensar sobre o passado que nos ensinaram. Na minha prática coleciono símbolos que serviram como documentos etnográficos e registros do cotidiano”, revela.
Para Keyna Eleison, as máscaras, cenas, objetos e personalidades de Herbert não são apenas imagens: “As pinturas não se mantêm quietas na superfície da tela. Em seu trabalho, Herbert chama, evoca, arrasta para os nossos olhos uma prática da certeza de outras existências. Com ele, vemos e vemos de novo e mais uma vez para que alcancemos seu gesto, na tela e no hoje”, comenta a curadora.